Uma das figuras maiores da História e da Cultura portuguesas deu conta, de forma simples e lapidar, certamente duas características do génio, da inevitabilidade da passagem do tempo e das marcas que ela, num permanente processo de (re)construção, vai deixando no caminho que as sucessivas gerações percorrem. Sim, estamos a pensar em Camões e no seu …mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (…) todo o mundo é composto de mudança/tomando sempre novas qualidades.
Humildemente, acrescentaríamos: e, tomando novas qualidades, vão-se mudando as formas de fazer. Num esforço continuado para que a qualidade permaneça. É com este espírito que se organiza e que se apoia o Festival de Jazz de Loulé.
Nesta sua 14.ª edição, a necessidade de racionalizar os recursos disponíveis aconselhou uma forma nova: um concerto de abertura organizado sob o patrocínio da iniciativa Allgarve e três concertos durante um fim-de-semana, ao invés de quatro em diferentes fins-de-semana. Cremos, no entanto, que a qualidade não foi posta em causa. Vejamos:
O festival abre as suas portas no dia 5 com um dos maiores nomes no activo: o pianista Herbie Hancock e o seu quinteto (concerto Allgarve). No dia 25, e como vem sendo hábito, o jazz feito em Portugal, agora pela mão de uma das suas mais recentes revelações/certezas, o quarteto do pianista Júlio Resende, que tem recebido elogiosas referências da crítica especializada.
No dia 26 sobe ao palco uma experiência musical única: a cantora alemã, de origem iraniana, Cymin Samawatie e o seu projecto Cyminology – um encontro privilegiado entre a música de jazz e os chamamentos de uma cultura ancestral.
O festival termina, no dia 27, com a actuação de um dos grandes grupos norte-americanos da actualidade, o SF Jazz Collective, grupo que dispensa bem as formalidades laudatórias.
Aqui fica, pois, a breve apresentação das mudanças e da(s) qualidade(s) que o Festival de Jazz de Loulé tem para oferecer este ano.
Fica igualmente o profundo e sentido agradecimento a todas as pessoas e entidades, públicas e privadas, que apoiam de forma iniludível e confiada a organização deste evento.
Manuel Soares
Monumento Duarte Pacheco, 22 horas/
Não são necessárias muitas palavras para apresentar o grande pianista e compositor norteamericano Herbert Jeffrey Hancock (Chicago, 12 de Abril de 1940). Iniciou-se muito jovem na música clássica, tendo tocado com a Orquestra Sinfónica de Chicago, aos onze anos de idade, o primeiro andamento do Concerto n.º 5 em Ré maior para piano, de Mozart. Depois de ouvir pianistas como Óscar Peterson e George Shearing, de quem fez transcrições, inflectiu para o jazz. Tocou ao lado de grandes músicos, com destaque para sua participação, nos anos 60, no grupo de Miles Davis. É um músico já galardoado pela Academia e vencedor do célebre Grammy. A sua música recolhe elementos do rock, da soul e, evidentemente, do jazz. O seu contributo para a redefinição da secção rítmica do jazz foi essencial. Foi igualmente um pioneiro na utilização dos sintetizadores e do piano Fender Rhodes. Estão no ouvido de todos temas tão conhecidos como Maiden Voyage, Cantaloupe Island, Watermelon Man, Chameleon, etc. O seu album "River: The Joni Letters" venceu o Grammy de 2008 (Álbum do Ano), o segundo álbum de jazz a vencer tal prémio.
Cerca do Convento do Espírito Santo, 22 horas
Uma das mais importantes forças da nova geração de músicos portugueses, o pianista Júlio Resende, foi inicialmente orientado por um dos mais significativos pedagogos do Jazz nacional, Zé Eduardo, prosseguindo os seus estudos com Rodrigo Gonçalves e Pedro Moreira, duas referências do jazz em Portugal. Resende começou por fazer estudos clássicos, cedo descobrindo que não ficava satisfeito em ser apenas um intérprete de peças musicais em que não pudesse improvisar. Decidiu então estudar e trabalhar com os melhores mestres do Hot Clube, New School for Jazz and Contemporary Music, Berklee College of Music e a Bill Evans Academy, entre o tempo que passou na Université de St. Denis, em Paris. “Da Alma” é o seu primeiro disco, constituindo uma estreia muito promissora. Enraízado na tradição, mas com uma abordagem criativa, aberta e moderna, a sua música é brilhante, colorida, sedutora, intrincada e bela. Resende tem um talento natural para a melodia. Podemos dizer que o “futuro” do Jazz em Portugal é agora feito “presente” com este grupo e o seu disco, “Da Alma”.
Cerca do Convento do Espírito Santo, 22 horas
Filha de emigrantes iranianos, a cantora Cymin Simawati nasceu em Braunschweig, Alemanha, sendo uma das grandes revelações do moderno jazz europeu. Estudiosa dos poetas persas dos séculos XI e XII (Hafiz-s Shirazi e Omar Khayyám), é-o igualmente da música erudita, que estudou na Hochschule fur Musik und Theater, em Hanover, e do jazz vocal, que começou a estudar na Hochschule der Kunste, em Berlim. Trabalhou com mestres como Steve Coleman, Mark Dresser, Dianne Reeves e Bobby McFerrin. Com este último, no festival de Braunschweig, interpretou poemas musicados dos autores persas acima referidos. Pela Europa e Extremo Oriente as suas tournées têm-se multiplicado e o seu primeiro disco, Cyminology, per se, é já uma referência. Atestam-no as inúmeras e abonatórias críticas. Por exemplo: “…uma obra-prima do jazz vocal”, Sound and image; “Cyminology é um conjunto de músicas maravilhosamente tocadas. O canto é incrível…a influência do Irão é predominante e a transição para os conceitos do jazz extremamente válidos. Fantástico.”, David Friesen.
Cyminology é uma síntese, um equilíbrio possível, entre tradição e modernidade, entre duas inspirações: a de uma música e tradição milenares e, por outro lado, a da liberdade única do jazz. Uma cantora de ascendência iraniana, um pianista francês, um contrabaixista alemão e um baterista indiano: aqui está Cyminology, um projecto que reúne quatro grandes artistas e que prova, através da sua música, que a interculturalidade é hoje uma realidade do nosso quotidiano.
Cerca do Convento do Espírito Santo, 22 horas
O SF Jazz Collective é já um nome mítico do jazz contemporâneo, uma verdadeira instituição. É constituído por nomes que dispensam apresentações, alguns deles que já nos visitaram e que todos, interrompem os seus projectos pessoais para se devotarem ao Collective. O grupo distingue-se não só pelo nível dos seus membros mas, sobretudo, pela diversidade dos seus talentos. Além de excelentes instrumentistas, todos são compositores e arranjadores de primeira água. O repertório do grupo contém composições próprias e brilhantes arranjos que contemplam, em cada ano, a música de grandes instrumentistas e compositores do jazz moderno: Ornette Coleman (2004), John Coltrane (2005), Herbie Hancock (2006), Thelonious Monk (2007); este ano será a vez de Wayne Shorter.
O SFJazz Collective foi eleito “Melhor Grupo de Jazz Emergente” pela DownBeat, em 2006, e as suas gravações têm estado na lista dos melhores álbuns da National Public Radio e Jazz Times.